A maioria das pessoas tem a fantasia de morrer dormindo? O que existiria por trás dessa idealização? O que de fato perdemos se isso acontecer? Será que existiriam formas de se morrer onde pudéssemos encontrar mais paz e até contentamento? Você perceberá que existem mais coisas no desejo de morrer dormindo do que meramente não sentir dor ou sofrimento.
Sumário
Introdução
Nesse episódio vamos falar sobre uma fantasia que parece fazer parte do imaginário da maioria das pessoas. Óbvio que ninguém quer morrer. Mas se nós pudéssemos ter uma escolha, como de fato, a nossa morte seria? Eu ministro uma disciplina de introdução à tanatologia na Universidade Estadual do Ceará, desde mil novecentos e noventa e nove para os cursos de enfermagem, serviço social, psicologia e terapia ocupacional. Logo no primeiro dia de aula especulo dos alunos sobre os motivos deles estarem ali, afinal, a morte não é um dos assuntos mais populares, embora paradoxalmente esteja sempre em evidência na mídia. Claro, o que não é popular, é a discussão da morte como um fenômeno existencial.
Discute-se a morte, o tempo todo, como se estivesse vendo uma partida de basquete. Os mortos não aparecem na mídia mas sim os seus números, na contabilização de vítimas fatais, ou em mais um atentado suicida, ou no número de mortos nas estradas no final de semana, ou infelizmente como aconteceu recentemente as tragédias provocadas pela chuva com os deslizamentos de terra soterrando várias e várias casas. Nos emocionamos quando de fato, nós conseguimos ver o rosto e saber um pouco da história de cada indivíduo. Nos emocionamos na medida em que ao saber um pouco da vida dessas pessoas, estruturamos laços de identificação com a existência delas.
Imaginando a própria morte
Bom, nesses mais de vinte anos dando aula de tanatologia, pergunto sempre aos meus alunos como eles imaginariam a própria morte. É recorrente a seguinte afirmativa: quero morrer dormindo, quero morrer de repente, não quero ver a minha morte, quero ter um AVC e apagar de vez e por aí vai. O que existe em comum nessas simbolizações, é a doce fantasia da morte súbita como se fosse uma benção, um lenitivo que vai eximir a pessoa da possibilidade de enfrentar a dor e o sofrimento.
Quase não se escuta, expressões do tipo: quero estar consciente até o fim ou quero ter tempo de fazer algumas coisas de fato importantes. É claro que não há uma coincidência nisso tudo, na verdade, talvez meus alunos não tenham tanto medo da morte em si, mas da forma como estamos morrendo nesse século vinte um.
Perda da Autonomia
Morrer parece ser um lento e inexorável caminhar para a perda total de autonomia. Vamos falar um pouco então sobre o que nós consideramos essas perdas.
Primeiro, a perda da autonomia, do saber sobre si, onde muitas vezes profissionais e familiares montam uma conspiração do silêncio e do escamoteamento frente ao que está querendo se dizer ou que não se pode dizer ao paciente. Na verdade todos sabem o que está acontecendo, menos apessoa acometida por uma grave doença.
Outro aspecto, a perda da autonomia sobre as próprias escolhas, onde o paciente não participa diretamente sobre os tratamentos que lhe são prescritos, e de poder determinar o momento em que o foco terapêutico possa mudar para uma outra forma de cuidado.
Além disso, a perda da autonomia sobre a realização de necessidades existenciais emergentes onde por ter clareza e objetividade sobre o que lhe acontece, deixa de satisfazer ou realizar necessidades vitais que poderiam ser satisfeitas no pouco tempo restante de vida. Por exemplo, o perdão por erros, reencontros com pessoas queridas, realização de satisfações estéticas, cumprimento de últimos desejos.É essa percepção que já norteia o olhar dos nossos jovens, sistematicamente afastados na infância da vivência dos rituais da morte e agora presenciando a morte dolorosa dos membros mais velhos da família, transformados em pacientes nas UTIS à espera da falência múltipla dos órgãos.
De frente com a finitude
Dessa forma de desassistência frente à finitude, não é de se estranhar que se queira morrer dormindo. Mesmo que isso nos roube tudo de bom que a vida possa ainda oferecer. Se o foco pudesse ser mudado, se a finitude pudesse ser aceita, e se ao descobrir que nada mais pode ser feito, entre aspas, o profissional de saúde tivesse diante de si a possibilidade de tudo poder realizar para diminuir a dor e o sofrimento, aí então, talvez pudéssemos idealizar a morte de uma maneira mais doce, não tão repentina, mas cercado pelo afeto dos amigos ao som da música que mais se gosta pois a ausência da dor permite a gente ouvir a beleza por exemplo, de uma composição de Bach ou de Mozart, sentir o carinho da mão amada, escutar o adeus das amizades que ficam.
Se você acha que esse tipo de forma de morrer, é muito idealizada, em breve, nós vamos estar discutindo sobre cuidados paliativa. Essa percepção de que não há mais nada a ser feito, ela é superada pela ideia de que tudo, absolutamente tudo pode ser feito para que a vida mesmo que no pouco tempo restante seja vivida com o máximo de potência de vida, onde as pessoas possam ser autônomas na realização dos seus comportamentos e desejos. Claro, essa é a minha fantasia, ela parece ser cheia de idealizações é verdade, mas é isso tudo que posso imaginar se penso que não sentirei dor nem que estarei exilado numa sala fria ao som de bibis e do estalar de ventiladores mecânicos, sem sol, sem cheiro de café, sem perfume de lavanda.
Expectativa normativa
O sociólogo canadense chamado Erving Goffman cunhou o termo “expectativa normativa”, ao estabelecemos interações com outros seres humanos, criamos expectativas e seus comportamentos dentro de determinados cenários. É isso fundamentalmente que permite parte da vida social à medida em que ao observarmos essas pessoas em seus contextos, não nos questionamos sobre o sentido do que fazem. Imagine só, se a gente entrasse em questionamentos crônicos, sobre se o vendedor de sapatos seria na verdade um vendedor de sapatos, ou se o médico no hospital de fato é médico. O tempo todo agimos e sofremos a ação de outros seres humanos com base numa certa identidade pressuposta que nós temos uns nos outros. Isso implica na perspectiva de Goffman que produzimos interações com base nos papéis que exercemos. O que pode algumas vezes colocar em questão, o sentido que possuem nossas identidades para nós nos outros. Se os papéis não atende as expectativas da plateia ou no próprio ator. Assim, todos nós temos um certo script por exemplo, mulheres casadas devesem se comportar de uma maneira, sacerdotes de outra, militares devem ter um certo tipo de postura, terapeutas devem ter determinada aparência, professores devem ser sempre inteligentes e eruditos, e os filósofos devem especular sobre a natureza humana etc.
Não suprir as expectativas que temos do exercício desses papéis em determinados contextos provoca estranhamento e até em posições para que os papéis se exerçam normalmente, ou seja, nós impomos aos outros a nossa vontade da maneira como eles devem se comportar dentro de determinados contextos, assim, ao que parece, temos uma expectativa normativa de como deve-se comportar as pessoas que estão morrendo. Pacientes graves devem estar sempre deitados em seus leitos de preferência em hospitais. Sua submissão à vontade da equipe deve ser absoluta. sua vulnerabilidade física e mental compromete seus desejos e julgamentos, o que torna seus cuidadores surdos frente a determinadas necessidades que não condizem com quem está morrendo. Como uma pessoa à beira da morte atreve-se a querer ir ao estádio para ver seu time na decisãodo campeonato? E o idoso completamente combalido não entende que seu lugar é no leito de UTI e não na formatura do bisneto? E a atriz de teatro com esclerose múltipla, que insiste em assistir à montagem de uma peça, não percebe que seu lugar é na cama a espera da morte? Estamos acostumados que as pessoas que estão morrendo, exerçam papéis complacentes, e sem que nos apercebamos nos preparamos para um dia, representarmos o nosso fim da mesma maneira. Afinal, a morte é feia, e nos tornamos feios com ela. Não devemos dar trabalho, não podemos constranger pessoas com nossa imagem. Então, paulatinamente a gente vai vendo exemplos que caminham numa direção contrária.
Pacientes impacientes
Posso citar um exemplo por exemplo de um norte americano chamado Scott que, aos cinquentae seis anos, quis viver o seu papel, diagnosticado com câncer e não mais respondendo aos tratamentos, foi rotulado como paciente terminal, mas ainda assim, queria levar sua filha ao altar, para isso contou com a ajuda adequada de profissionais preparados tecnicamente e sensíveis às suas necessidades. Nenhum aparato gigantesco foi mobilizado e o custo financeiro, deve ter ficado muito longe das dispendiosas ressonâncias magnéticas realizadas em pacientes imersos num prolongamento indefinido da vida em meio a fortes dores e sofrimentos.
Aqui e ali despontam pacientes que se tornam impaciente. Que percebem novas possibilidades de se viver intensamente até o fim. Pode ser uma grande viagem ainda não realizada, uma tarefa importante não cumprida, ou mesmo uma tarde de verão ao lado, de quem não se via e falava há muito tempo.
A vida pode pulsar de alegria se a dor estiver sob controle e as pessoas perceberem que novos papéis podem ser representados em velhos palcos. Basta que a gente incorpore o personagem humano que vive em nós, e o preparemos para a derradeira estreia que acontecerá em algum momento do fim de nossas vidas.
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