Memorial Vale da Saudade

“Você não está só”

Texto extraído do podcast Thanatocast. Caso se interesse por escutar-lo, você encontrará nas plataformas Spotfy, Google Podcasts

Um projeto do Memorial Vale da Saudade, apresentado por Erasmo Ruiz

Podemos evitar o suicídio?

O Memória Vale da Saudade ele tem uma preocupação, porque normalmente no mês de setembro existe uma tendência muito grande da questão e muito válida também a campanha de prevenção a questão do suicídio. E as famosas frases bem comuns do tipo “você não está só”, quando boa parte de nós experimentamos durante todo o ano o sentimento talvez de solidão em alguns momentos. No entanto se adiantou com os nossos grupos de pós-venção e de prevenção também durante todo o ano que a gente sabe que boa parte do tempo estamos só. E nesse estar só pode vir alguns pensamentos e pra evitar que esses pensamentos venham é que nós trabalhamos tanto durante todo o ano, não apenas na época de setembro mas uma preocupação sempre constante e latente. Agora, a pergunta que não quer calar, que sempre colocam como chavão “podemos evitar o suicídio”, nós podemos evitar o suicídio, professor?

Então, o que me assusta as vezes é ver essa pergunta na verdade ser uma afirmação como você colocou. Podemos evitar o suicídio? Sim. Podemos evitar todas as possibilidades de suicídio? Evidentemente que não. E às vezes eu vejo em algumas palestras, em algumas ações, essa fala ser compartilhada. Bom, nem que a pessoa fosse o mais competente dos estudiosos sobre a questão ela necessariamente não teria poder estelepáticos pra entrar na mente de cada pessoa pra intuir o que aquela pessoa naquele momento está planejando fazer da própria vida.

Agora, a gente tem que parar um pouco pra refletir sobre determinadas possibilidades e determinados mitos que precisam ser desconstruídos. Eu acho que o mais importante deles é aquela velha história, tem gente por exemplo que diz que quando uma pessoa está se lamuriando muito, quando uma pessoa tá muito lamentosa, ela tá fazendo aquilo pra chamar atenção. É como se esse fosse um comportamento comparável a birra de uma criança. Quando as pessoas falam que desejam a própria morte, e esse tipo de fala é recorrente e ainda mais grave essa fala é acompanhada das maneiras como a pessoa pensa em fazer isso, grande parte das pessoas ainda não entenderam o quanto isso é sério e tendem a dizer que aquele velho chavão “as pessoas que fazem isso é como o cachorro que late mas não morde”. Essa metáfora pode até funcionar para os cachorros mas eu não recomendo que ninguém tente colocá-la em julgamento, em prática. Mas no caso dos seres humanos não.

Quando uma pessoa recorrentemente fala de um certo sentimento da necessidade de morrer isso precisa ser levado em conta. Porque se não for levado em conta, o risco de que essa pessoa de fato possa cometer suicídio é significativo. O que que é levar em conta? No mínimo estar preparado para acolher expressões de dor, sentimento, dificuldades que dá o real valor, a real importância que isso tem na vida da pessoa, mesmo que pra você aquelas questões sejam consideradas menores.

CVV

José Saramago tem uma frase que eu gosto muito, “Se puderes olhar, ver, se puderes ver, repara”. Na minha opinião, são três vertentes da questão do observar o ser humano. Eu acredito que se pudéssemos reparar, como último grau, talvez pudéssemos ter um papel atuante na questão da prevenção ao suicídio. Se não fossemos tão rápidos, se não fossemos tão acelerados, mas se pudéssemos parar e observar com mais clareza e acolher mais a voz. Faz sentido pra você?

Eu acho que sim, não tenho dúvida disso porque por exemplo, vamos pegar o famoso CVV, Centro de Valorização da Vida, é um dos dispositivos de maior importância, de maior relevância, é a garantia que você tem de que se você tiver as três horas da manhã sufocado, angustiado, você possa pegar o teu telefone e ligar pra alguém que naquele momento esteja disposto a te ouvir. Já imaginou se a gente tivesse uma sociedade onde a maioria das pessoas tivesse essa disposição, se o teu melhor amigo pudesse receber um telefonema seu, às três horas da manhã, porque você não tá num dia legal.

A gente sabe que essa possibilidade pode até existir, mas a maioria das pessoas não vai usar dessa liberdade com seus amigos. Então por que que o CVV é importante? ele é como um airbag no automóvel, se você mesmo que não abaixa a velocidade a quarenta quilômetros por hora, se você colidir, se você não tiver um airbag o teu tórax é o local onde você vai bater na direção do carro e você pode até morrer por conta disso, o airbag impede você de ter maiores problemas.

Diria assim que o airbag ele acolhe você naquele momento súbito.

A ideia é essa, o que é o acidente? É aquele momento em que você está com o ímpeto de cometer o suicídio visto como uma única solução naquele momento pra aplacar a dor e o sofrimento, mas ao mesmo tempo algo em você que algumas pessoas vão chamar de “razão”, outras pessoas vão chamar de “o dedo de Deus”, não importa o nome que a gente dê pra isso, vai fazer com que você ainda tenha um espaço de reflexão, mas que você quer compartilhar com alguém.

Esse alguém tem que existir e esse é um dos grandes problemas hoje, a gente tá vivendo um paradoxo onde a gente tá cada vez mais convivendo com mais e mais pessoas, mas ao mesmo tempo a gente tá se sentindo sozinho. Então aquela velha música do Roberto Carlos, eu não acredito que a nossa felicidade vai se construir pelo fato de querer ter um milhão de amigos. Mas pelo menos uns quatro ou cinco que a gente tem a confiança de de de ter como conversar ou espaços, dispositivos de saúde mental, que sejam mais amplos, projetos de ação social que deem sustentação à atividades correlatas ao CVV por exemplo.

Na época do setembro amarelo eu vejo algumas postagens nas redes sociais de profissionais super bem intencionados, que colocam assim “conte comigo a hora que você precisar”, eu acho isso terrível. Porque a pessoa olha aquilo e diz, olha eu tô precisa dessa pessoa às quatro da manhã, vou ligar pra ela agora e e a pessoa não atende. Então não é uma coisa pra que os indivíduos solidariamente resolvam, é uma coisa pra que haja políticas públicas de prevenção de saúde mental e ao mesmo tempo políticas de ação social que os vários grupos, as várias empresas fazem, que eu acho que é o grande trabalho, por exemplo, que o Memorial Vale da Saudade tem, de se preocupar com essas questões que vão muito além das necessidades econômicas de vender ou prestar serviços, isso é maravilhoso.

Plano funerário Memorial Vale da Saudade
"Você não está só" 1

Estratégias para acolher familiares e amigos enlutados pelo suicídio

É uma humanização, é um acolhimento, é isso que nós nos preocupamos de poder de fato sermos agentes propulsores de acolhimento. Professor falando sobre o luto, quais são as possíveis estratégias pra apoiar e ajudar familiares e amigos que são enlutados pelo suicídio?

A princípio essas estratégias não se diferenciariam muito daquelas que comumente a gente utiliza em práticas de acolhimento ao luto. Mas no caso do suicídio eu acho que é fundamental por exemplo, esse tipo de trabalho que a gente chama de pós-venção e trabalho em grupo. Por que isso? hoje a gente vive uma situação onde alguns autores dizem isso que praticamente toda e qualquer expressão de luto começou a não ser reconhecido quando a gente pensa na questão do tempo.

Explica isso melhor, professor. Se a gente olha pro passado, vamos lá, pegar um túnel do tempo e ir lá pra Inglaterra no período vitoriano, o que que durava, quanto durava o processo de luto? Durava anos e isso inclusive era demarcado pela própria sociedade. As mulheres tinham que passar uma quantidade maior de tempo usando preto quanto mais próximas elas estivessem do morto. As viúvas usavam mais tempo, as filhas usavam menos e por aí ia. E isso criava uma rede de suporte social muito grande, uma pessoa vista de preto numa atividade qualquer, mesmo que ninguém conhecesse aquele indivíduo, alguém estanho chegaria e dizia, meus sentimentos, minhas condolências, a senhora passou por que perda? Essa ideia de que você pode a compartilhar a sua dor e essa dor ser acolhida era uma espécie de convenção social.

Hoje, primeiro impacto, a gente não tem mais claramente os sinais de luto, eles não se dão pelas roupas que a gente veste. Pode ser que alguém tropeçando no Facebook ou no Instagram veja lá a fitinha de luto e descubra depois de meses que um amigo que você tinha contato anteriormente perdeu o pai, perdeu mãe, perdeu o filho. Então hoje a gente tem uma espécie de curto circuito social pra comunicar publicamente que nós perdemos alguémimportante na nossa vida, esse é um aspecto. Segundo aspecto, há uma necessidade imposta socialmente das coisas acontecerem cada vez mais e mais rápido. O mundo agora da inteligência artificial é assim, aquilo que o designer poderia demorar uma semana pra produzir em termos de qualidade de imagem, agora aperta-se três ou quatro botões, tá pronta a imagem ali. Então isso parece intensificar a necessidade de ritmos cada vez mais rápido, o que implica uma dificuldade inicial do luto. Por quê? Ritmos variam muito de um indivíduo pra outro, tem pessoas que passam por uma perda significativa e depois de um mês parece ter reestruturado um certo equilíbrio pra ter uma vida funcional novamente. Alguém pode precisar de três meses, alguém pode precisar de dois anose precisar de menos ou mais tempo não é um indicador seguro pra dizer se essas pessoas amavam a mais ou menos.

Então, por exemplo, dentro de famílias, a gente percebe isso claramente. As pessoas têm um ritmo diferenciado de retomada daquilo que a gente chama de normalidade da vida. E de novo, isso não diz se a filha ou o filho gostavam mais ou menos do pai que morreu. Qual é o problema? O problema é que as pessoas que estão externas ou mesmo da própria família começam a exigir umas as outras ritmos diferentes. E às vezes esses ritmos são impostos de uma forma que eu diria violenta.
– Ah o vovô já morreu há três meses e a senhora não se livra da roupa dele ainda, dá pra alguém que está precisando.
A pessoa intimamente não está preparada pra isso naquele momento, ela vai ter que ter o tempo dela. Porque simbolicamente se desvencilhar das roupas naquele instante é como se você matasse a pessoa de novo.
– Ah você passa o dia inteiro vendo essas fotografias que coisa depressiva vai pra vida, vai curtir o cinema, saia com os amigos.
A pessoa não tá preparada pra isso, e fazer isso ao invés de aliviar, implementa sentimentos de culpa, é como se ele tivesse dizendo pra mim que aquela pessoa não é importante.

É onde entra em um papel bem importante dos grupos de apoio do Memorial.

Aí chegamos,olha só que legal. Se você tem uma uma mãe que perdeu o filho pelo suicídio conversando com uma viúva que o marido cometeu suicídio conversando com uma outra moça, uma outra mulher que perdeu a mãe pelo suicídio, aquela que perdeu o namorado, primeiro ninguém vai invalidar a expressão de luto e sofrimento um do outro porque as pessoas são necessariamente empáticas com a dor porque apesar das pessoas serem diferentes cada uma sabem que todo mundo está sofrendo.

Ninguém vai chegar e vai dizer assim pra outra, ah para de sofrer mulher, vai pra vida, porque cada uma sabe da dificuldade de viver aquele momento.

Qual é o grande problema do luto hoje em dia?

É a necessidade de um ritmo mais acelerado. As pessoas entram num mundo onde quase todo mundo invalida a dor e o sofrimento. E isso é terrível, metaforicamente é como se você tivesse com uma farpa de madeira na mão e chegasse alguém na intenção de tirar aquela farpa, só que fica mexendo com ela e aprofunda mais ainda. Então um dos segredos da gente tentar entender o processo de luto e a forma como as pessoas lidam com ele é entendendo a singularidade mas entender também que elas precisam estar no ambiente onde a expressão de dor e sofrimento não seja invalidada. Eu vou dar um outro exemplo que saiu um pouco a margem da questão do suicídio, embora pro suicídio isso seja importante,
estar em grupo onde as pessoas possam falar das suas dificuldades, dos seus sentimentos de dor, dos seus sentimentos de corresponsabilização é extremamente importante.

Um outro espaço onde essa questão da invalidação é maior é quando por exemplo mulheres tem perda gestacional. Uma das falas mais recorrentes:
– Você ainda é jovem, daqui a pouco você vai poder engravidar novamente.
É doloroso demais ouvir uma coisa dessas, então o que é fascinante nos trabalhos de grupo é você ter uma relação que não se dá só com o terapeuta uma reação mais uma relação mais geológica mas se dá com uma rede de afetos que vão construir relações de entendimento mútuo e que se preservam. Os grupos que eu coordenei no Memorial por exemplo, eles não deixaram de funcionar quando o facilitador deixou de mediar as relações, as reuniões semanais.

Uma coisa que eu percebo aqui, por exemplo, muitos participantes justamente por não encontrar esse acolhimento fora, eles buscam novamente entrar no grupo porque ainda precisam, porque ainda não conseguiram encontrar fora. O Vale da Saudade tem aberto outro dia da semana pra que acolhesse mais pessoas justamente pela falta de espaço onde essas pessoas possam compartilhar das suas dores não entendidas.

Um projeto do Memorial Vale da Saudade, apresentado por Erasmo Ruiz

Objetivando o acesso a todos que não podem escutar nosso podcast, extraímos o texto para melhor aproveitamento daqueles que preferem a leitura. Caso se interesse por escutar o podcast ThanatosCast, você encontrará nas plataformas Spotfy, Google Podcasts e Youtube.

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