Nós lidamos com a morte o tempo todo. Vemos a morte dos outros que aparece para nós como números. Infelizmente também temos de lidar com a morte de pessoas que amamos. Mas, o que será que sentimos quando temos que lidar com a nossa própria morte quando nossa vida é ameaçada? Vamos compartilhar com vocês uma experiência pessoal onde olhamos diretamente para a morte e ela estava viva.
Sumário
Introdução
Lidamos com a morte o tempo todo. A morte no seu sentido abstrato qual é a morte do outro quando aparecem notícias na TV falando de assassinatos, atentados terroristas. Infelizmente temos que lidar em algumas circunstâncias com a perda das pessoas que amamos. Mas em algum momento da sua vida você já teve que lidar com a sua própria morte?
Eu vou explicar melhor pra vocês… existem situações onde a nossa vida é diretamente ameaçada. Por exemplo,
eu já passei por duas situações que eu chamo de “limites na minha vida”. Uma que foi ter que administrar um câncer de colo em dois mil e catorze e onde eu me senti muito ameaçado, em outro momento eu vou contar essa experiência pra vocês, e antes do câncer de colo eu passei por uma situação que me fez pensar, refletir profundamente sobre a minha morte. Eu vou contar pra vocês como é que foi isso:
Relato
Eu estava voltando de Brasília, eu sempre saio contente de Brasília, uma cidade que na minha opinião foi feita só pra se admirar. Verde que se mistura ao cinza do concreto, pedras lapidadas em cimento que parecem desafiar a lei da gravidade como os anjos suspensos na catedral. Curvas, retas, olhares que transplantam a utopia da íris dos nossos olhos ao infinito do gênio chamado Oscar Niemeyer. Mas pra mim o encanto passa logo. Existe algo muito opressivo no ar como se os prédios desabassem em nossos cérebros e aquele cheiro de dinheiro misturado com o sangue que atravessa as vias expressas e descansa nas esteiras do congresso e da câmara com um toque de filme de ficção científica com pouco orçamento.
Eu sou uma pessoa simplória, eu preciso das esquinas, dos vendedores de quinquilharia nos sinais, da decimetria absoluta de estilos arquitetônicos. O padrão sempre me assustou e Brasília parece ser o atestado de um sonho em que acordamos endividados quase diante do fim do mundo.
Bom, já deu pra perceber que eu não gosto muito de Brasília. Me perdoe alguém que tenha nascido em Brasília ou que esteja me ouvindo agora em Brasília. Mas pra mim, pra completar o aeroporto parece ser um corredor onde centenas de seres em pacientes desfilam de um lado para o outro no portão de embarque em busca de algum artesanato que nunca esteve nas mãos de artesão nenhum e quando chega o inverno o vento que passou pela cidade se esgueira por aquele maldito corredor fazendo gelar a alma, mas nada que uma sopa descongelada e aquecida pela milésima vez não possa minimizar.
E tudo seguia a rotina de sempre até o voo com a mesma empresa, mas algo diferente nos esperava naquele voo, que nos levava embora da mesmice insuportável de Brasília, para o calor das praias de Fortaleza. Uma turbulência especial fez o avião chacoalhar e perder a altitude quatro vezes no espaço interminável de trinta segundos. Faltava ainda mais de uma hora para chegar em Fortaleza mas o voo demorou mil anos. Descobri que não sentia medo da morte, mas sim de morrer. A morte, a morte é um problema tão nosso, tão complexo, tão difícil da gente expressar e ao mesmo tempo tão ordinário, tão singelo. Lembrei-me imediatamente de uma música de Gilberto Gil onde ele diz:
Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no Sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar
E lá estava eu no avião com direito inclusive a vontade de ir ao banheiro, como na música, antevi minha morte e todo o sofrimento decorrente disso. Não meu provavelmente pois tudo seria muito rápido mas o sofrimento daqueles que ficariam pra trás. O que ainda poderia ser feito em tempo tão curto? um abraço, um afago, um apertar de mãos, uma oração. O que é afinal, essa passagem que nos faz levitar sobre a vida que a gente deixa pra trás? E o avião seguia subindo, seguia caindo e Gil ainda martelava na minha cabeça. E lembrei-me de outra parte da música:
A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
O além já será então
Não terei pé nem cabeça
Nem fígado, nem pulmão
Como poderei ter medo
Se não terei coração?
Talvez inadivertidamente Gil recitava Platão, um Platão em Poesia pois a morte não deve ser outra coisa senão duas possibilidades:
- Um reencontro com todos que já se foram, um reeditar de lembranças que ganharam vida na alma liberta do corpo que agora acha solta de todas as amarras e pode conhecer tudo.
- Ou finalmente o silêncio de tudo que nos livra da dor, da ansiedade, do tormento de ficar imaginando a todo tempo tudo que vai se passar. Ah, se não tivermos coração então não teremos mais medo.
Mas de novo o Gil me alertava:
Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim
A morte é depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu
O derradeiro ato meu
E eu terei de estar presente
Assim como um presidente
Dando posse ao sucessor
Terei de morrer vivendo
Sabendo que já me vou
Um presidente presidindo a própria morte. Não tinha como escapar daquela maldita turbulência que me dizia naqueles derradeiros segundos tudo aquilo que eu ainda não tinha sido. Era essa a sensação, um saber de tudo o que não sabia e que era importante ter sabido, vivendo e morrendo, me vendo nos quadros que não pintei, nas lutas que não travei, nos mares que não foram navegados.
Aí nesse instante sim
Sentirei quem sabe um choque
Um piripaque, um baque
Um calafrio ou um toque
Coisas naturais da vida
Como comer, caminhar
Morrer de morte matada
Morrer de morte morrida
Quem sabe eu sinta saudade
Como em qualquer despedida
Ufa! Quem se despediu da gente? Foi a turbulência. Fiquei me apalpando meio que procurando saber se estava em outro plano. Outra dimensão boiando numa anti-matéria qualquer. As comissárias impacíveis seguiram retomando o serviço de bordo. Um leve tremor de dedos por sobre os copos de plástico deixava perceber que a minha experiência tinha sido também um pouco da experiência delas. Fui descendo então do avião como naquele filme antigo, como era mesmo o nome O Céu Pode Esperar ou quem sabe o inferno, não importava mais. Havia tido uma missão prática de tanatologia ao som da música de Gilberto Gil na minha cabeça.
Portas
A turbulência e a poesia de Gil me lembraram que muito ainda havia ser feito e que o problema não é a morte, mas sim morrer deixando portas importantes pra gente abrir. Era essa a mensagem que eu queria deixar pra vocês. Não precisamos passar pela experiência limite de quase morrer. Nós podemos nesse momento parar pra pensar em relação a tantas mas tantas portas que ainda temos que abrir em nossas vidas.
—
Objetivando o acesso a todos que não podem escutar nosso podcast, extraímos o texto para melhor aproveitamento daqueles que preferem a leitura. Caso se interesse por escutar o podcast ThanatosCast, você encontrará nas plataformas Spotfy e Google Podcasts
Conheça o Memorial Vale da Saudade e tenha toda a tranquilidade que você precisa!
Siga nossas redes sociais.