Nossa vida é uma síntese complexa de memórias. Nosso corpo habita um espaço físico. Podemos ter uma dimensão material e sensória do que cada um de nós é. Mas no campo do pensamento, vivemos no reino da memória. Ela nos dota dos resultados de nossa experiência, ela é uma bússola que nos guia em decisões simples ou complexas. A memória diz para cada um de nós quem somos e o que é o mundo. Mas esbarramos em um problema básico. Se mal nos lembramos muitas vezes de como foi nosso café da manhã, parte enorme do que compõe nossas memórias vieram de um passado que vai muito além da experiência pessoal.
Como nos lembra o belo poema de Cecília Meireles:
Cântico XXIV
“Não digas: este que me deu corpo é meu Pai.
Esta que me deu corpo é minha Mãe.
Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram
em espírito.
E esses foram sem número.
Sem nome.
De todos os tempos.
Deixaram o rastro pelos caminhos de hoje.
Todos os que já viveram.
E andam fazendo-te dia a dia
Os de hoje, os de amanhã.
E os homens, e as coisas todas silenciosas.
A tua extensão prolonga-se em todos os sentidos.
O teu mundo não tem pólos.
E tu és o próprio mundo.“
Pensando no poema, talvez o maior desafio do ser humano é ver no passado um oráculo onde responder questões sobre história da humanidade é também responder sobre si mesmo. Ao olhar o passado com os olhos do conhecimento, podemos então estabelecer uma melhor confiança de que erros terríveis não se repetiriam.
Entretanto, estamos acorrentados a um presente que nos usurpa o tempo livre. Tecnologias que serviriam para o nosso conforto na verdade nos causam dependência psíquica. Vivemos em uma redoma de vidro e o que aconteceu no passado parece não dizer absolutamente nada sobre como obter mais seguidores no instagram, ter um corpo bonito ou estabelecer bons relacionamentos. Vivemos a ilusão de que tudo aquilo que pode ser imediatamente observado ou usado nos basta para ter uma boa vida. Mas nossa individualidade é interconectada com a vida de outras pessoas. Repentinamente algo que aconteça do outro lado do mundo pode determinar como será nossa vida nos próximos anos.
Ao lembrarmos do “Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto” trazemos novamente a memória as tristes imagens de seres humanos que foram excluídos com base em ideias de superioridade racial, preconceito e ódio. Além dos seis milhões de judeus, tivemos outros milhões de pessoas também mandados para os campos de concentração para serem exploradas ao limite e depois assassinadas em massa: prisioneiros de guerra, ciganos, homossexuais, pessoas de seitas religiosas ou por simplesmente ouvir jazz.
Pensar no Holocausto é se lembrar recorrentemente do que foi esse momento. Não apensas como uma referência em frios textos de história. É também usar a internet para buscar imagens, testemunhos de sobreviventes e análises investigativas quando estes fatos terríveis tinham acabado de acontecer.
Ensinou o Padre Antonio Vieira que “o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam conosco.” Sei que é desagradável trazer de volta a imagem de crianças chacinadas, de homens e mulheres com corpos esquálidos, de lembrar e ou descobrir que usavam a pele de pessoas para fazer carteira.
O que queremos destacar é que horrores como esses que aconteceram durante a segunda guerra mundial não podem ser esquecidos sob a pena de que essas coisas terríveis venham a se repetir em novos patamares trágicos. A volta de movimentos nebulosos que flertam ideologicamente como nazismo e o fascismo é um sintoma terrível de que paira no mundo um véu de esquecimento. Esses fantasmas só podem ser vencidos se pensarmos que qualquer luta contra um poder opressivo é também uma luta por preservar a memória. Não podemos relegar os mortos ao esquecimento. A manutenção da memória viva da tragedia do holocausto afirma que essas mortes não foram em vão e mais, que isso não pode se repetir sob pena de hoje estabelecermos novos alicerces em nossos corações para a volta de Treblinka, Dachau, Auschwitz, Sobibor, Birkenau e outras filiais do inferno.
A barbárie reinou nos Campos de Concentração. Em seus fornos crematórios se tentou destruir tudo aquilo que chamamos de civilização: cultura, história, empatia, alegria, vida espiritual e amorosidade. Construir um futuro melhor é manter viva a memória para que a civilização refloresça sempre.
Erasmo Ruiz